quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Han, o bebé sete mil milhões ... Haverá lugar para ele?


De 2004 para cá, o índice dos preços da comida da FAO mais do que duplicou. A água escasseia. O planeta está a consumir por ano 50% mais do que a terra consegue suportar. É neste cenário que vamos bater mais um recorde de crescimento populacional

A 31 de outubro de 2011, nascerá um bebé. Será destro, rapaz e chinês.

Esta criança - vamos chamar-lhe Han, em honra da etnia mais populosa da terra, os chineses Han - será o 7 000 000 000.º ser vivo do planeta.

Comerá mais carne, leite e ovos do que os seus pais e avós alguma vez sonharam possível. Terá, a avaliar pelos dados de hoje, mais possibilidades de vir a possuir um telemóvel do que uma conta bancária.

Nascerá mais facilmente em meio urbano, e pobre, do que rural. Assistirá, muito provavelmente, ao declínio do poder dos Estados em detrimento do das cidades, num mundo ainda mais desigual.

Mas congratular-se-á com a progressiva transferência do poder económico do Ocidente para a Ásia, onde viverá numa das 15 megaurbes com mais de 10 milhões de habitantes que essa região terá em 2025 (cinco delas na China). Quando olhar para trás, para os anos que antecederam o seu nascimento, Han verá que já prevíamos boa parte dos males que assolam o seu mundo: as mudanças climáticas, a escassez de água, o custo proibitivo dos alimentos e da energia.

E no entanto, durante algumas décadas, não parecia que fosse esse o destino de Han. Poder-se-á dizer que quando o Ensaio sobre o princípio da população saiu, em 1798, as perspetivas eram igualmente sombrias. No entanto, desde a época em que o livro do inglês Thomas Malthus foi dado à estampa, a extraordinária aventura da Humanidade não parou de se desenrolar.

Só no século XX, e apesar da pressão posta no planeta, a população quadruplicou, o nível de vida aumentou, a produção de alimentos também disparou, as taxas de mortalidade infantil desceram a pique, a esperança de vida dobrou. Durante algum tempo, já para o fim desse século, pareceu até que o preço do petróleo, das matérias-primas e da comida não parariam de descer. Já depois de 2000, segundo o Banco Mundial, saíram da linha de miséria 400 milhões de pessoas na China, 200 milhões na Índia, 50 milhões no Brasil.

Toda essa gente abandonou um menu à base de vegetais para uma ementa mais à base de carne. A China, por exemplo, quadruplicou o seu consumo entre 1961 e 2001. (Na Índia, por razões culturais, manteve-se praticamente igual). A bomba demográfica foi desarmadilhada nos países ricos, na Rússia e em alguns dos seus antigos países satélites, a população até está a decrescer (a Rússia passou de um pico de 148,5 milhões em 1991 para os atuais 142).

Mas a alvorada do século XXI parece menos prometedora. Depois de décadas de progressos na redução da fome e do número de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, assistiu-se a uma recessão global que teve início em 2008 e parece não ter fim à vista e duas crises alimentares (2007-08 e 2010-11), que atiraram de novo para uma vida abaixo do limiar mínimo de subsistência mais de 150 milhões de pessoas. As últimas vítimas são os 11 milhões de indivíduos que, no Corno de África, estão em risco de vida enquanto a ONU se debate internacionalmente para arranjar fundos e localmente para entrar numa Somália devastada pela guerra civil, privada dos seus recursos naturais pelas frotas pesqueiras do Ocidente e tornada num autêntico cemitério de lixos tóxicos pelo resto do mundo.

POBREZA E TERRORISMO

E não é só a África para lá do Sara que se vê nestas dificuldades. No Paquistão, um dos países de maior crescimento populacional do globo, a percentagem de pessoas que sofrem de "insegurança alimentar" subiu de 37% em 2003, para os 49% em 2010, ainda antes das devastadoras cheias de julho. Esta massa humana adverte Abid Qaiyum Suleri, um especialista de Islamabad "pode ser facilmente convertida ao terrorismo ". Esta opinião é repetida por David Bloom, demógrafo em Harvard, que se refere a países como o Paquistão e a Nigéria, como verdadeiras "bombas de fragmentação".

Bloom, que pode ser acusado de tudo menos de neomalthusianismo, adverte que o crescimento demográfico é um "conto de dois mundos". "As nações menos desenvolvidas são e serão responsáveis pelo crescimento populacional das próximas quatro décadas; enquanto no resto do mundo, com a exceção dos EUA, ele se manterá estável. Em 1950, 68% da população mundial residia nos países em desenvolvimento. Hoje são 82 por cento.

Mas no ano de 2050 serão 86%", disse à rádio pública norte-americana NPR. "Esses países tendem a ser os países mais frágeis de um ponto de vista político, económico, social e ambiental, pelo que a situação pode refletir-se negativamente em muitos outros lugares" um pouco a exemplo do que tem acontecido na Europa, com a chegada em massa de imigrantes de África à ilha italiana de Lampedusa.

De 2004 para cá, o índice de preços alimentares da FAO mais do que duplicou, enquanto os do petróleo iam de uns modestos 40 dólares o barril em 2000 para um pico de quase 140 em 2008 (atualmente situa-se acima dos 100 dólares um patamar tido como inatingível não assim há tanto tempo). O planeta está a consumir mais recursos do que o sustentável segundo a ONG World Wide Fund, por ano, 50% mais do que a terra consegue suportar.

UM PLANETA EM STRESSE

Olhe-se para a água: em 2015 serão já 3 mil milhões a viverem em países que sofrem de "stresse hídrico" aqueles em que a água disponível per capita é menor do que a necessária para satisfazer todas as necessidades alimentares, industriais e domésticas. Morrem 1,5 milhões de crianças com doenças relacionadas com falta de água e saneamento.

Como a gestão humana (soviética) sobre o mar do Aral já demonstrou, existe um limite a partir do qual a exploração dos aquíferos é insustentável a ponto de não matar só um lago, ou um rio, mas boa parte da atividade socioeconómica à sua volta. A situação é especialmente má na Ásia, que tem mais de 60% da população mundial e apenas 36% da água doce disponível no mundo.

Na China, por exemplo, uma fatia substancial da água usada para regadio vem de fontes não sustentáveis, como a sobreexploração de caudais subterrâneos e o desvio excessivo do caudal dos rios.

A parte final do rio Amarelo secou quase todos os anos entre 1972 e hoje, com algumas exceções pontuais, e as águas subterrâneas do Norte da China, onde se concentram 800 milhões de pessoas, podem mesmo acabar até 2020.

Um sinal de que Pequim já percebeu o problema é ter começado a importar quantidades massivas de soja ou de água, consoante o ponto de vista do Brasil. Outra, é ter entrado na corrida às terras "arrendadas" a outros estados, nomeadamente africanos (as aspas devem-se ao facto de muitos desses países não terem legislação que regule o uso ancestral e comunitário da terra agrícola e portanto os agricultores locais se limitarem a ver de repente as suas terras invadidas por maquinaria ao serviço de estrangeiros, com todo o potencial de conflito que isso desencadeia. O fenómeno chama-se land grabbing). Outros países, como a Arábia Saudita e a Coreia do Sul, já entraram nesta corrida.

Calcula-se que na Índia que terá ultrapassado a China em população em 2025 pelo menos 25% por cento dos alimentos estejam a ser produzidos com práticas não sustentáveis. O Médio Oriente e em particular a Península Arábica também está sob enorme pressão. O National Intelligence Council, dos Estados Unidos, há anos que vem alertando para a escassez de água como fonte potencial de conflitos nas próximas décadas a questão israelo-palestiniana é apenas um exemplo.

Há também sinais de que podemos estar perante uma crise crónica dos alimentos por exemplo a Oxfam publicou a 1 de junho um relatório em que prevê que o preço do milho subirá 86% até 2030, devido às mudanças climáticas. Esta subida, aliada a outros fatores, fará com que o preço das matérias-primas alimentares torne a duplicar nas duas próximas décadas, pondo os Estados como a Tunísia, a Líbia, o Egito, a Síria e o Iémen em causa. "Uma nova era de crise(s)" poderá levar "ao colapso do sistema global de produção de comida", alerta a ONG.

CEREAIS: O NOVO PETRÓLEO

A alta dos preços da energia também está a por sob imensa pressão a agricultura.

Por um lado, os fertilizantes são em boa parte feitos à base de nitrogénio sintético, que por sua vez necessita de gás natural cujos preços são tremendamente instáveis e quase duplicaram na última década. Por outro, os EUA, seguindo o exemplo brasileiro, destinam agora quase um terço da sua produção de cereais para biocombustíveis. Ou seja, os cereais passaram ser. uma espécie de petróleo e o seu preço ligado ao da energia. Outra forma de dizer isto é, como faz a Oxfam, "desviar a comida das bocas para o depósito dos carros". A Oxfam relaciona também esta política com o fenómeno do land grabbing. "Atingir os 10% de biocombustíveis na totalidade dos combustíveis gastos em transportes, globalmente terá atirado mais 140 milhões de pessoas para a pobreza em 2020." Para se ter uma ideia, na Europa seria necessária uma área quase do tamanho de Portugal para se atingir esse objetivo e a produção anual de dióxido de carbono equivaleria a mais 26 milhões de carros.

A Oxfam acusa, ainda, a especulação com os preços dos alimentos de estar a atingir níveis insustentáveis: só o Barclays Capital, um dos grandes atores no mercado de derivados das matérias-primas alimentares na Europa, terá ganho 406 milhões de euros nessa atividade, em 2010. O investimento especulativo neste mercado terá subido de 15 mil milhões de euros em 2003 para, pelo menos, 200 mil milhões, em 2008. (Outros cálculos apontam para 317 mil milhões).

Como resultado da especulação, das alterações climáticas, da subida dos preços da energia e de catástrofes naturais, os preços do milho, do sorgo e do trigo, por exemplo, aumentaram mais de 70% entre junho e dezembro de 2010 Daqui até 2043 altura em que seremos 9 mil milhões a produção agrícola terá de subir 60% para satisfazer as necessidades globais. Mas com as atuais tecnologias e partindo do pressuposto que todas as condições são ideais ela aumentaria apenas 50%, segundo a ONU. A procura de bens alimentares poderá subir entre 70% a 100%, até chegarmos a meio do século estima um estudo feito em colaboração com o Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, apresentado aos ministros da Agricultura do G-20, em junho deste ano. Hoje, todos os dias são acrescentadas 200 mil pessoas à mesa de jantar da Humanidade e países como a Nigéria e o Burkina-Faso habilitam-se a triplicar as respetivas populações, caso nada seja feito para baixar as taxas de fecundidade.

Se a isto somarmos as mudanças climáticas, perto de 370 milhões de pessoas ficam em situação de "insegurança alimentar", alerta ainda a Oxfam.

Ou seja, quando nascer, Han viverá num mundo seriamente ameaçado...

João Dias Miguel
Visão - Quarta feira, 31 de Ago de 2011

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